Saturday, June 16, 2007

" SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN" escreve sobre Rui Cinaty e Timor-Leste



Publicado no : Poesia distribuída na rua.



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

O meu primeiro e inesquecível encontro com Timor foi aquela madrugada em que, ao chegarmos a casa, depois de não sei que festa, mal abrimos a porta da rua fomos surpreendidos por um barulho de vozes e risos. E quando abrimos a porta da sala vimos os nossos filhos - ainda pequenos - e a queridíssima criada Luísa sentados no chão em roda de Ruy Cinatti que tinha ao seu lado uma mala de onde iam saindo tecidos, objectos de madeira, caixas, pequenas estatuetas, punhais - e naquela noite de Lisboa cheirava de repente a sândalo.
Mal nos vimos abraçaram-nos com alvoroçada alegria. Depois também nós nos sentámos no chão. O Ruy contou que o avião dele tinha chegado já de noite e ele não tinha tido coragem para ir àquela hora em busca de hotel. Por isso tinha mandado o táxi seguir para a Travessa das Mónicas e disse que ia dormir ali mesmo no chão porque gostava muito do nosso chão. Mas logo a Luísa partiu a fazer-lhe uma cama e eu fui deitar as crianças tontas de sono e de excitação. E de novo me sentei no chão a ouvir as histórias de Timor, das árvores, das flores, dos búfalos , das fontes, das danças e dos ritos. E enquanto falava o Ruy ia mostrando as suas fotografias da maravilhosa mulher de longos gestos e dos homens vestidos com os belíssimos trajes tradicionais - às vezes levantava-se e fazia alguns passos de danças timorenses.
E assim ficámos até dez horas.
Ao longo dos dias, ao longo dos anos muitas vezes falei de Timor com o Ruy. Contou-me como celebrara o pacto de sangue com o chefe de uma família timorense e como por isso, segundo a lei ancestral de Timor, se tornara ele próprio um timorense. De facto para ele Timor era uma verdadeira pátria. Para mim era uma ilha encantada no extremo do Extremo Oriente, mas para ele uma pátria - o lugar onde encontrara o seu destino.
E um dia trouxe-me um poema que ele traduzira da língua tétum - Chamava-se Consagração de uma casa timorense.
Era um poema sobre a construção de uma casa - uma construção simultaneamente prática e sagrada pois é a casa onde moram os deuses e os homens, a alma dos antepassados mortos e os seus descendentes vivos. O lugar onde convivem o presente e o passado e o eterno.
Uma construção que é, nos materiais e formas usadas, uma técnica meticulosa e rigorosa e, simultaneamente, é, gesto por gesto, uma poética. E onde o espírito religioso estabelece o carácter sacral do quotidiano.
Uma construção que é simultaneamente trabalho, canto, dança, grito, consagração e festa. Uma ordenação que é poema vivido rente ao quotidiano.
Não posso deixar de citar uma passagem do texto que diz:

«Estão atando, amarrando andam,
atar pontas só, amarrar as bases só,
atando bem, peso igual.
Já andam levando, já sustentando aos ombros,
Levantando aos gritos, levando em algazarra,
Dançando o Hou-ló, dançando o Herlele,
Entoando o Sala-makat e o Da’a-doun.
Cão estrangeiro, galo estrangeiro.
Cantar o Kolo-kolo e o Bui-muk.
Levar até vir, trazer até vir,
Terra plana, terra nivelada,
Em terra umbigo, em terra centro.
Em terra meio, em terra eixo,
Junto pedra angular, em pátio sagrado
Colocar plano, pôr ordenadamente,
O cimeiro seguir um ao outro, o pé um ao outro.»

(excerto do prefácio a À Janela de Timor de João Aparício

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